Transcrição Disssociação: Mecanismo de Fuga Psicológica
Definição e Espectro Fenomenológico da Dissociação
A dissociação é definida como uma desconexão psicofisiológica entre pensamentos, identidade, consciência e memória.
No contexto do trauma sexual grave, quando a fuga física é impossível, a mente executa uma «fuga psicológica».
É um mecanismo anestésico de emergência; assim como um disjuntor é acionado para evitar uma sobrecarga elétrica que incendiaria a casa, a mente "desliga-se" para proteger a psique de uma dor intolerável. Este fenómeno existe num espectro.
Em um extremo, encontramos a absorção normal (como se perder em um livro) e, no outro, a fragmentação clínica grave.
O sobrevivente pode experimentar desrealização (o mundo parece onírico ou artificial, como um cenário teatral) ou despersonalização (sentir-se separado do próprio corpo, observando-se a si mesmo do teto).
Para a vítima de abuso, essa desconexão pode ter sido a única forma de preservar um núcleo de sanidade enquanto seu corpo era violado.
Identificação de marcadores clínicos no cliente
No ambiente terapêutico, a dissociação nem sempre é dramática; muitas vezes é sutil.
O terapeuta deve estar atento a mudanças abruptas na presença do cliente, tais como o aparecimento repentino de um «olhar vidrado» ou fixo, um achatamento afetivo em que horrores são narrados em tom monótono, ou longos períodos de silêncio e confusão mental.
Outro marcador é a descontinuidade narrativa ou amnésia lacunar, em que o cliente tem "buracos negros" na sua memória biográfica ou não consegue lembrar-se do que acabou de dizer.
Esses lapsos não são evasivas voluntárias, mas evidências de que o sistema límbico desligou as funções corticais superiores (linguagem e lógica) devido à reativação de uma ameaça percebida durante a sessão.
Dissociação estrutural: personalidade emocional e aparente
Em casos de trauma crónico, a dissociação pode estruturar-se numa divisão operacional da personalidade.
Por um lado, desenvolve-se uma «Personalidade Aparentemente Normal» (PAN) que tenta funcionar na vida quotidiana (trabalhar, socializar) desconectada do trauma.
Por outro lado, subsistem uma ou várias «Personalidades Emocionais» (PE) que contêm a memória traumática, o terror, a raiva e a vergonha, e que permanecem fixadas no momento do abuso.
Essa compartimentação permite a sobrevivência, mas a um custo elevado de energia psíquica.
As «partes emocionais» podem irromper na consciência através de reações somáticas ou emocionais desproporcionadas que a parte «normal» não compreende nem reconhece como suas («Não sei porque fiz isso», «Não me sentia eu mesmo»).
O objetivo terapêutico é reduzir as barreiras amnésicas entre estas partes para alcançar uma integração coerente.
Resumo
A dissociação é uma fuga psicológica de emergência diante de uma dor intolerável, desconectando identidade e memória. Esse mecanismo anestésico permite preservar um núcleo de sanidade mental por meio da desrealização ou despersonalização, enquanto o corpo é vulnerado fisicamente sem defesa possível.
Na terapia, manifesta-se através de olhares vidrados, achatamento afetivo ou amnésia repentina. Esses lapsos evidenciam que o sistema límbico desligou as funções cognitivas superiores diante de uma ameaça percebida, impedindo o processamento verbal e lógico do trauma.
O trauma crónico divide a psique entre uma parte funcional diária e partes emocionais que contêm o terror. Estas partes irrompem inesperadamente, exigindo trabalho terapêutico para reduzir as barreiras amnésicas e alcançar uma integração coerente da personalidade fragmentada.
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