Transcrição Crenças inúteis
Bom dia, cocheiro, nota-se um certo tom de cansaço na sua voz.
Sem nos deixar retribuir a saudação, continua o seu solilóquio:
Estou muito mal. As minhas horas de descanso resumem-se a um filme de ficção. As tarefas domésticas exigem uma folga, não é verdade? Tenho de trabalhar, apesar dos meus cinquenta anos. Para além disso, tenho de estar disponível para o caso de os meus filhos ou netos terem algum problema. Vivo com os meus filhos. Um tem vinte e cinco anos e o mais velho entrou na casa dos trinta há um mês. Sinto que me estou a afogar. Parece que todos os meus problemas se estão a juntar, como uma concatenação de acontecimentos trágicos. Não sei que desgraça a vida planeou para mim hoje. Não aguento mais e, contraditoriamente, sei que tenho de ser mais forte.
Crenças aceites.
Há um momento crucial, quando as nossas próprias crenças se entregam, "colapsam" os nossos neurónios ou simplesmente nos cansamos de lidar com a carga pesada que carregamos. Reparámos nas crenças que predominam nesta senhora? Para começar, porque é que tem de fazer todas as tarefas domésticas da casa sozinha? Porque é que não tem tempo livre? Observamos as crenças de capacidade: "Não consigo fazer mais"; de merecimento: "Estou à espera da desgraça que vai acontecer hoje"; e as crenças de possibilidade: "Tenho de estar disponível". A questão é: porquê? É preciso manter a casa financeira e afetivamente. Tem a função de atuar como "Deus da família".
Questionamento.
O Deus que tudo pode e tudo resolve. À pergunta: Onde está o teu marido? Responde ela, olhando com relutância para o relógio:
- Aquela almofada? Está a ver futebol, é só o que lhe interessa. Os meus filhos, coitados, não lhes posso pedir ajuda porque trabalham todos os dias. Já estão demasiado stressados.
- Não é verdade? A sua saúde é menos importante?
- Sim, é importante, mas eu faço o que uma mãe deve fazer... Já ensinou os seus filhos e o seu marido a terem alguma consideração por si e pelas suas necessidades?
- Ensinou? Não. Só o facto de os ver felizes recompensa-me. Usa muito o termo "filhos", porque é que ainda vê os seus filhos, agora adultos e crescidos, como crianças?
- Porque são meus filhos.
- Não acha que continuar a tratá-los dessa forma pode ser um problema?
- Não acha que isso incentiva a independência que inconscientemente está a exigir que eles tenham?
- Ter de fazer algo que não é da responsabilidade deles, por exemplo? O dever deles era estudar e agora têm de trabalhar e ser felizes.
- O que significa sacrifício para si - pensou durante alguns segundos.
- O meu sonho, desde pequena, era ser mãe e quando eles nasceram prometi a mim própria que eles nunca teriam de se sacrificar. Dar-lhes-ia tudo.
- Então não lhes cabe a eles ajudar-te?
- Não... vamos ver, bem... sim... mas...
- O que é que significa para si ser uma boa mãe?
- Dar a minha própria vida, se necessário, por eles.
- E no processo de dar a sua própria vida, não se esqueceu de viver a sua? Ou de permitir que eles vivam a deles e desenvolvam a sua autonomia, para que se possam manter de pé?
- Sim, mas se eu os deixar fazer o que querem, continuo a ser uma boa mãe? Tenho medo que deixem de me amar ou que sintam que podem confiar-me todos os seus problemas, coisa que a minha mãe nunca fez. Sentir que eles confiam em mim tranquiliza-me.
Observação.
Exemplo claro e manifesto de crenças inúteis. Esta mulher estava a tentar desenraizar-se de um ponto de referência materno que não era nada útil: a indiferença, que a levava a ser a mãe mais superprotectora do mundo. Não delegava em ninguém, nem contava com uma figura paterna. Veio ter connosco devido a um problema de incapacidade, de vitimismo e de agressividade em relação ao seu ambiente. Uma convicção que ela alimentou durante mais de cinquenta anos. Os meus filhos não me podem ajudar. Sou uma boa mãe se os ajudar em tudo. Tenho de assumir as suas responsabilidades. Não os posso deixar viver a sua própria vida, porque o dever de uma mãe é estar presente em tudo. Sejamos realistas, estas crenças são inúteis.
Por mais negativa que seja uma crença, existe um reforço positivo, que é aquele que não nos permite sair dessa zona de conforto, e por isso o hábito de pensar sempre nisso e seguir os mesmos padrões é ativado com relativa frequência. No exemplo, a mulher estava "ansiosa" por conseguir um vínculo materno-filial, que não conseguiu estabelecer. Este sentimento dá sentido à sua vida. Estou stressada mas cumpri um objetivo, sou uma boa mãe. Olhando para isto através da lente das suas experiências passadas, se a sua mãe nunca alcançou uma proximidade emocional com ela, o facto de conseguir que "os seus filhos" confiassem e dependessem dela deu-lhe permissão para admitir que era uma boa mãe.
Continue a questionar-se.
Nunca pare de perguntar e questionar. Para novas crenças, novas perguntas. A única maneira de reprogramar o nosso subconsciente é adquirir o hábito da constância. Deixemos de justificar:
- A minha crença tem ou não provas reais e objectivas? Que factos a comprovam?
- Com que objetivo mantenho esta crença? Quais ou quem são as partes lesadas?
- Que elementos positivos é que eles me trazem?
- Que emoções sinto quando esta crença se desenvolve? Quero continuar a senti-las? Estou disposto a mudar?
Guia do questionamento socrático.
Vamos resumir o guia de perguntas socráticas, visto em vídeos anteriores, com a intenção de deixar formulado o manual para nos guiar no caminho da procura de respostas:
- Em que estado me encontro neste momento?
- Que resultados obtenho com este estado?
- Quais as coisas a que dei menos prioridade por estar nesse estado?
- Isso afecta a minha vida de alguma forma?
- O que aconteceria se a situação se invertesse positivamente?
- Que tipo de elementos funcionam como condicionantes para o evitar?
- Que pessoas o ajudam ou não a mudar a situação? Porquê?
crencas inuteis